terça-feira, 23 de outubro de 2018

Holanda A Ousadia da Liberdade

Holanda A Ousadia da Liberdade

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Vista de Delft (tela de Vermeer)
A Holanda mais uma vez surpreende o mundo. Além de, há alguns anos, ter liberado comedidamente o consumo de drogas em certas cidades grandes, e legalizado o casamento homossexual, o parlamento em Haia aprovou a eutanásia, a morte consentida do paciente terminal. Se muitos sentem-se chocados pela liberalidade daquele país, é bom ressaltar que essas atitudes complacentes e tolerantes não vêm de agora, mas estão entrelaçadas com os últimos quatro séculos da história dos batavos.
A República das Províncias Unidas
"Os governante das cidades (Amsterdã), souberam naturalmente pôr em prática a recomendação de Spinoza de organizar uma sociedade em que a maioria dos homens imaginam que vivem como entendem, e eles os contiveram não pelos horrores de uma tirania teológico-política, mas apelando ao seu amor à liberdade e ao seu desejo de adquirir dinheiro e honras."

H. Méchoulan - Dinheiro e Liberdade, 1990

Que ninguém se assombre com as coisas que ocorrem na Holanda de hoje. Lá tudo se ousa, não só o direito de poder drogar-se, o de casar-se com o sexo que melhor aprouver, como o mais recente, o de consentir-se que nos matem no instante em que a vida, no seu estertor, tornou-se-nos insuportável. Coisas da Holanda, diz-se. Desde o nascer daquele pequeno país, nos tumultos das guerras religiosas do século XVI, quando chamou-se de República das Províncias Unidas (formada por sete províncias e várias cidades independentes), os holandeses optaram por prestigiar a liberdade. Enquanto os reis e os padres se associavam no restante da Europa para oprimir, reprimir, ou assustar com as penas do inferno os seus súditos e fiéis, as gentes dos Países-Baixos seguiram o oposto. Rebelando-se contra o império espanhol de Felipe II, que queria lhes enfiar goela abaixo o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, apostaram na harmonia e no bom convívio dos contrários. Enquanto a nobreza da vizinhança ainda enaltecia o cavaleiro de espada e escudo, fanfarrão e briguento, os holandeses admiravam o mercador hábil nos dinheiros e na conquista das praças, dado ao cálculo e não à bravata.

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Um povo em luta constante contra o mar (o desabamento do dique de S.Antônio, Amsterdã)


Estrutura Original da Holanda
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O Tratado de Tolerância

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O cientista C. Huygens
Para atrair os que pensavam como eles, acertaram no Tratado de Tolerância da União de Utrecht, acordado em 1581, que ninguém que lá vivesse ou que lá chegasse em busca da poorterschap, o direito de cidadania, seria importunado por motivos religiosos. Quer seguissem Lutero ou Calvino, quer carregassem a Torá, fossem católicos fugidos do bispo ou anabatistas acusados de heresia, não importava, todos teriam guarita. Não queimariam nem bruxas nem filósofos. Foi assim, que naquela terra desolada do Mar do Norte, no grande pântano gelado que era a Holanda do século XVI, a liberdade, no seu sentido mais lato e profundo, sentou pé na Europa. No momento em que na Ibéria, na época da União das Coroas, se afastava a possibilidade de unir-se por canais o rio Tejo ao Manzanares, visto tal obra ferir a vontade de Deus, na Holanda, a população inteira, desafiadora, empunhava a pá e empilhava pedras nos diques para dominar, metro a metro, a braveza do mar que a assolava. Se na Ibéria expulsavam os judeus como raça maldita, marrana, na Holanda, eles serviam como modelos para as figuras sagradas das pinturas de Rembrandt.

O Mercador como Modelo

Tela de Rembrandt)
O mercador como rei
Enquanto em Portugal e na Espanha, de monges e de soldados, todos aferravam-se ao princípio da honra e de que lidar com títulos e promissórias eram coisas baixas, indignas de um povo cristão, os homens de Roterdã e de Amsterdã, libertos de toda e qualquer autoridade conciliar ou dogmática, lançavam-se pelos mares a roer-lhes o império. Amparados pelas Companhias das Índias Orientais (1602) e depois as Ocidentais (1621), eles põem um pé nas Índias Orientais, outro nas Antilhas, outro no nordeste do Brasil, outro ainda em Angola, montando assim a sua poderosa talassocracia mercantil. Por todos os lados esses calvinistas furiosos e cobiçosos afugentam os católicos à canhonadas (o que levou o Padre Vieira a compor em 1640, aquele soberbo e conhecido sermão, o pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal, desesperado com as glórias dos heréticos holandeses). Lembrando-se ainda que coube a Hugo Grocius, o grande tratadista do Mare Liberum, de 1609, implodir juridicamente com o Tratado de Tordesilhas (que desde o século XV transformara os oceanos num lago ibérico), abrindo, sob os olhos do direito internacional, as águas do mundo a quem mais ousasse.
Liberdade de Imprensa e Pensamento

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Spinoza, o pensador herético morto em 1677
Foi lá, a partir de Amsterdã, onde por primeiro garantiu-se a liberdade de imprensa e onde editaram-se as principais obras dos Iluministas, para infelizmente serem censuradas ou queimadas na França dos Luíses (A Enciclopédia, de Diderot, o grande instrumento da revolução intelectual do século XVIII, foi impressa inteiramente na Holanda a partir de 1751). Como também somente no clima rude, mas inquiridor da Holanda que o filósofo Baruch Spinoza pôde concluir a sua leitura crítica dos Evangelhos e de outros livros sagrados, publicando-a em 1670 com o título de Tratado Teológico-Político (se bem que logo condenada pelo sínodo da Igreja Reformada e banido em 1674), oferecendo o caminho para a defesa da liberdade de culto e do estado secular que iria inspirar o liberalismo político no século seguinte. Tudo isso fez daquele pequeno país o paraíso da editoração do livre-pensamento, contribuindo para que a Holanda no século XVII, sozinha, imprimisse mais livros do que todos os demais países europeus juntos.
O Testemunho de Descartes
Nada melhor do que o testemunho do filósofo Descartes, que lá se fixara desde 1628, para atestar o fabuloso que era viver nos Países Baixos naquela época (*). Em carta ao seu amigo Balzac, datada de maio de 1631, escreveu: "que outro lugar poderia haver no resto do mundo em que todas as comodidades da vida, e todas as curiosidades que podem ser desejadas sejam tão fáceis de serem encontradas senão como aqui? Em que outro país se pode gozar de uma de uma liberdade tão completa, se pode dormir com menos inquietude, em que outro país há sempre exércitos prontos para nos proteger, onde os envenenamentos, as traições, calúnias sejam menos conhecidos, e onde tenha restado mais do que um pouco de inocência de nossos ancestrais?"
Portanto, nada de espantar-se com que nos chega de lá agora, nada de sustos. Coisas da Holanda!

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Arte holandesa, sempre ousada, inesperada.


(*) Um dos motivos que afirmaram a decisão de Descartes deixar Paris em definitivo para ir viver nos Países Baixos foi o impacto que o julgamento de Galileu causou na época, acusado de heresia pelo Tribunal da Inquisição em Roma, em 1633, por sustentar que a Terra se movia.

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