A ética em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José
Saramago
Cibele Lopresti Costa
SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros
FERRAZ, S., et al.,orgs. Deuses em poéticas: estudos de literatura e teologia [online]. Belém: UEPA;
Campina Grande: EDUEPB, 2008. 364 p. ISBN 978-85-7879-010-3. Available from SciELO Books
.
Resumo:
A leitura de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago,
sugere a reflexão sobre a construção da personagem Jesus que
antecipadamente traz em si uma herança religiosa. Esse estudo torna-se
pertinente, pois ele é resinificado na voz do narrador contemporâneo:
perde a sacralidade bíblica e se constrói à imagem daquilo que é
humanamente possível. Assim, o ponto de vista do narrador favorece a
seguinte reflexão: o que ela – personagem Jesus – revela em seu ponto
de vista que é do âmbito do sagrado, do religioso, segundo o texto
bíblico? E o que é próprio da natureza humana? E, ainda, que valor
humano apresentado pela narrativa coincide com os valores apresentados
na figura bíblica de Jesus? Esta reflexão tem por objetivo pensar na
universalidade e pertinência dos valores apontados pelo narrador para
que se possa dimensionar a possível contribuição da Literatura para a
construção de valores éticos na contemporaneidade.
Palavras-chave: Saramago, narrador, personagem, sagrado, ética.
Abstract:
The reading of The Gospel according to Jesus Christ, by José
Saramago, calls for thought on the construction of the character Jesus,
who carries in himself a pre-established religious inheritance. This
study becomes relevant since Jesus acquires a new meaning in the voice
of the contemporary narrator: losing his biblical holiness, he is built
in the likeness of the humanly possible. The narrator’s point of view
thereby evokes the questions: according to the biblical text, what does
the character Jesus show, in his point of view, that belongs to the realm
of the sacred, of the religious? And what belongs to human nature? And,
still, which human value presented by the narrative coincides with the
values presented in the biblical figure of Jesus? These considerations
seek to evaluate the universality and relevance of the values established
by the narrator in order to allow the assessment of Literature’s contribution
to the ethical construction of values in the contemporary age.
Keywords: Saramago, narrator, character, the sacred, ethics.
1. Introdução
As primeiras linhas de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de
José Saramago, surpreendem pela força imagética do texto. O narrador
descreve a cena em que há o contraste entre a luz do sol e a dor presente
na expressão do rosto de um homem. O leitor já sabe do que se trata,
pois o título já antecipou a principal informação. É a figura sofrida de
Jesus no momento da crucificação.
O sol mostra-se num dos cantos superiores do retângulo,
o que se encontra à esquerda de quem
olha, representando, o astro-rei, uma cabeça de
homem donde jorram raios de aguda luz e sinuosas
labaredas, tal uma rosa-dos-ventos indecisa
sobre a direção dos lugares para onde quer apontar,
e essa cabeça tem um rosto que chora, crispado
de uma dor que não remite, lançando pela
boca aberta um grito que não poderemos ouvir,
pois nenhuma destas coisas é real, o que temos
diante de nós é papel e tinta, mais nada. (ESJC,
2000, p.13).
Tem-se, na imagem, a representação da dor daquele que morreu
pela humanidade, segundo os preceitos do catolicismo. Entretanto, ao
dizer que nada é real, o narrador aponta para uma possível reflexão:
o que se apresenta como singular nesta narrativa? Ou, ainda, o que
foi recuperado pelo narrador do romance em questão do texto bíblico
sobre Jesus?
O ponto de partida para a análise que segue é a constatação de
que o desfecho para a história é a mesma: a crucificação. Assim, sabe-se
antecipadamente que o narrador intencionalmente mantém a trajetória
da personagem e que seu destino é a morte. Entretanto, sabe-se também
que a obra é um objeto literário e não sagrado, tornando a leitura
instigante, já que o leitor passa a buscar o viés singular apresentado
pela voz narrativa. Cabe ao leitor identificar as dissonâncias e as ressonâncias
do texto sagrado no evangelho literário de Saramago.
183
2.
A dessacralização
Frye, em seu livro O código dos códigos, apresenta um interessante
estudo a respeito da Bíblia. Logo na introdução, revela as possíveis
direções utilizadas para seu estudo. Segundo o autor, a abordagem
que se tem feito a respeito do texto bíblico dá-se sob dois vieses: a crítica
que estuda o pano de fundo histórico e cultural para seu surgimento
e a tradicional, que observa os aspectos teológicos e eclesiásticos de
seu significado. Entretanto, ele propõe uma outra, a crítica feita a partir
da análise dos textos que, reunidos, formam isso que chamamos de
Bíblia, já que ela é a comunhão de várias escrituras. Afirma ele:
Isto levaria a um estudo integrado deste Livro
da Bíblia, talvez de toda a Bíblia, como a que se
conhece hoje, tendo como êmulo a pergunta sobre
por que essa Bíblia emergiu com essa forma
particular e não outra.
Com toda a miscelânea de
seu conteúdo, a Bíblia não parece ter ganho existência
através de uma série improvável de acasos;
conquanto seja o produto final de um processo
editorial muito longo e complexo, esse produto
deve ser examinado à luz de sua própria existência.(Frye,
2006, p. 16)
Nessa perspectiva, a leitura da Bíblia favorece a formulação de
outra análise que leva o leitor ao reconhecimento de um conjunto híbrido
de vozes e a alegorias, à imagética e à polissemia. Assim há a
aproximação entre o texto bíblico e a literatura. Logo, a possibilidade
de considerá-lo literatura amplia sua leitura, pois o foco de análise se
volta para o que não está dito, mas está escondido no jogo de imagens.
Ele é a sombra do que se quer dizer, uma possibilidade entre tantas.
Ao considerá-lo texto literário, há uma importante mudança de
paradigma. O leitor dos evangelhos deixa de buscar o apaziguamento
espiritual e passa a procurar o encantamento próprio que reside nas
histórias bem contadas. Ou seja, o leitor cai na armadilha do contador
de histórias que não dispõem de fatos comprováveis, mas de linguagem.
E, aos moldes dos evangelhos presentes no texto sagrado, o narrador
do ESJC93 faz sua versão dos fatos, atualizando a história de Jesus,
desde seu nascimento até a morte.
O narrador do evangelho saramaguiano demonstra ter conhe93
A seguir, o romance analisado será chamado de A seguir, o romance analisado será chamado de ESJC.
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cimento do texto bíblico, pois recupera os fatos lá registrados e – ao
estabelecer novo ponto de vista – amplia o caráter polissêmico da obra.
Esse novo foco sugere possibilidades inéditas de leitura, já que agora se
apresenta uma possível versão do protagonista da história. A narrativa
em terceira pessoa apresenta detalhes sobre a personagem central, pois
já pôde ler a todos os outros evangelhos e contextualizar as conseqüências
provocadas pela sua trajetória. O hibridismo aqui presente se
delineia na coexistência dos discursos histórico, eclesiástico, científico
e literário.
O seu nome também é Maria, segunda na ordem
de apresentação, mas, sem dúvida, primeiríssima
na importância, se algo significa o lugar central
que ocupa na região inferior da composição. Tirando
o rosto lacrimoso e as mãos desfalecidas,
nada se lhe alcança a ver o corpo, coberto pelas
pregas múltiplas do manto e da túnica, cingida na
cintura por um cordão cuja aspereza se adivinha.
É mais idosa do que a outra Maria, e esta é uma
boa razão, provavelmente, mas não é a única, para
que a sua auréola tenha um desenho mais complexo,
assim, pelo menos, se acharia autorizado a
pensar quem, não dispondo de informações precisas
acerca das precedências, patentes e hierarquias
em vigor neste mundo, estivesse obrigado a
formular opinião.
Porém, tendo em conta o grau
de divulgação, operada por artes maiores e menores,
destas iconografias, só um habitante doutro
planeta, supondo que nele não se houvesse repetido
outra vez, ou mesmo estreado, este drama, só
esse em verdade inimaginável ser ignoraria que a
afligida mulher é a viúva de um carpinteiro chamado
José(...). (ESJC, 2000, p. 15)
O tom irônico usado no fragmento acima, ao citar o leitor desconhecedor
dos fatos, sugere uma importante singularidade da obra aqui
estudada. Se tudo já se sabe, nada mais há que se contar, entretanto, há
uma nova forma de fazê-lo.
A novidade do ESJC está na voz do narrador
contemporâneo que modifica o tom eclesiástico, seleciona fatos a serem
relatados e dá voz aos sentimentos da personagem Jesus.
A dessacralização da personagem central se realiza na ampliação
dos discursos que coexistem na voz do narrador. Eles contribuem
para a construção de uma nova versão para a trajetória da personagem
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retratada na perspectiva de sua humanidade. A narrativa agrega conhecimentos
da ciência, das artes e da história para compor a tradução
moderna das experiências relatadas. Nessa composição há a novidade
que provoca estranhamento. A coexistência de um novo ponto de vista
sobre a história conhecida e da linguagem do narrador tornam a obra
inédita e reveladora.
O efeito provocado no ato da leitura pode ser
o disparador para uma inédita experiência, aquela que leva o leitor à
reflexão ou ao choque. Portanto, seu caráter epicrânico está presente na
representação de um Jesus que busca sua humanidade, já que ele se
afasta da conduta reflexiva da meditação e assume a possibilidade de
viver experiências terrenas, concretas a fim de encontrar respostas a
sua angústia existencial. Assim, a trajetória da personagem leva o leitor
a criar analogias com suas próprias experiências.
3. A materialização
A história contada no livro passa a retratar a vida de Jesus que
procura sua origem, sua razão de viver e a causa para seus males. E
em vez de encontrar a voz salvadora e sagrada do Pai, ele encontra a
perdição. Percebe-se condenado ao sofrimento provocado pela ação
impensada do pai biológico e pelo desejo de poder do pai espiritual.
Deus é representado por uma personagem obstinada em deter o poder
perpétuo sobre todos os homens e anuncia a Jesus que quer usá-lo
como instrumento para a obtenção de seu objetivo.
A desilusão pela qual passa a personagem Jesus espelha a angústia
vivida pelo homem na contemporaneidade. As perguntas lançadas
pelo narrador no romance sarapuiano são as nossas perguntas. Por
que temos que viver a barbárie? Quem há de nos salvar se nem mesmo
Deus irá nos salvar nesse instante? Que caminhos devemos seguir se a
solidão persiste? Que ética nos guiará?
O filho de José e de Maria nasceu como todos os filhos dos homens,
sujo do sangue de sua mãe, viscoso das suas mucosidades e sofrendo
em silêncio. Chorou porque o fizeram chorar, e chorará por
esse mesmo e único motivo. (ESJC, 2000, p.83)
A natureza da personagem é humana.
Ele nasceu do corpo de
sua mãe a também tem um corpo. As palavras viscoso e mucosidades
materializam sinesteticamente o corpo de Jesus. Ele é humano e não
divino, pois revela sua qualidade humana ao agir no mundo e se afasta
da caracterização sagrada apresentada nos evangelhos bíblicos. O
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tempo contínuo expresso pelo gerúndio sofrendo revela o movimento
constante da dor. Os tempos pretérito e futuro no mesmo enunciado
– chorou, chorará – dão constância a sua história. Ao engendrar o nascimento
de Jesus na teia dessas escolhas lexicais e sintáticas, o narrador
faz também a rede que capta o leitor em sua armadilha.
Se nascemos
todos do mesmo jeito, se somos filhos da mesma carne e da mesma
terra, estamos fadados à mesma trajetória.
Ao leitor desavisado parece não haver saída. Ao longo do romance,
o narrador apresenta, na voz de Deus, a antecipação do sofrimento
pelo qual Jesus irá passar. Metaforicamente é também o sofrimento vivido
pela humanidade:
Deus inspirou profundamente, olhou em redor o
nevoeiro e murmurou, no tom de quem acaba de
fazer uma descoberta inesperada e curiosa, Não o
tinha pensado, isto aqui é como estar no deserto.
Virou os olhos para Jesus, fez uma longa pausa, e
depois, como quem se resigna ao inevitável, começou,
A insatisfação, meu filho, foi posta no coração
dos homens pelo Deus que os criou, falo de
mim, claro está, mas essa insatisfação, como todo
o mais que os fez à minha imagem e semelhança,
fui eu buscá-la aonde ela estava, ao meu próprio
coração, e o tempo que desde então passou não a
fez desvanecer, pelo contrário, posso dizer-te, até,
que o mesmo tempo a tornou mais forte, mais urgente,
mais exigente. (ESJC, 2000, p.369)
O caráter dramático da narrativa se constrói na desilusão da personagem
Jesus frente à filiação.
Não há pai que o salve dessa infinita
tristeza. A morte do pai biológico deixou-lhe uma triste herança, um
sonho recorrente que sugere a responsabilidade de uns frente à morte
de outros. Na repetição do sonho, há a presença da dúvida quanto ao
agir frente às coisas do mundo. Ao morrer, o progenitor despertou na
mente do filho a consciência sobre a responsabilidade do homem frente
à morte ou salvação, ou melhor, sobre o comprometimento que há
entre os habitantes da Terra.
Quanto ao pai espiritual, a desilusão permanece. Esse pai revela
que ele mesmo plantou no coração dos homens a insatisfação. Outra
herança dolorosa. Ele – Jesus – nada pode esperar da transcendência.
Nem mesmo na transcendência do Criador há a mão que o pode salvar
da angústia. A trajetória de sua vida passa a ser uma aventura desconhecida.
O romance se materializa como objeto de transgressão aos evangelhos
bíblicos. A narrativa concretiza as experiências filosóficas vivenciadas
pelos homens na contemporaneidade, daqueles que já se desiludiram
de Deus e da salvação divina. E aponta também para a direção de
outros caminhos para a salvação. A personagem Jesus encontra o amor
ao conhecer Maria de Magdala. Apropria-se de seu corpo e permite
que seu braço seja o amparo dela e que o braço dela seja seu amparo.
E assim vivificam a unidade desejada, transcendem à dor terrena e encontram
a paz, mesmo que momentânea. O corpo passa a ser objeto
de descoberta. A linguagem do narrador favorece esse encontro e há o
apaziguamento das emoções.
Não te prenderás a mim pelo que te ensinei, mas
fica comigo esta noite. E Jesus sobre ela, respondeu.
O que me ensinas, não é prisão, é liberdade.
(...) Fala-me da tua vida, mas agora não só quero
que a tua mão esquerda descanse sobre a minha
cabeça e a tua direita me abrace. (ESJC, 2000,
p.284)
Assim, a narrativa aponta para novas possibilidades de salvação.
E o leitor se dá conta da forma singular desse evangelho e de suas pistas
para novos rumos frente ao conflito humano.
Escolhas
Se por um lado, a orfandade retratada no romance de Saramago
leva o leitor à experiência amarga do abandono, há outra possibilidade.
O narrador reconta os passos de Jesus anteriores à crucificação, transgredindo
o caráter religioso, pois usa a linguagem como instrumento
de vivificação de suas características humanas.
O narrador (re)conta
a história tornando a personagem especial pelo agir, pelo seu modo
dessacralizado de viver. Na passagem da multiplicação dos peixes, há
o relato da incerteza vivida pelo protagonista e, ainda, sua ação a favor
da sobrevivência:
Que o Senhor esteja consigo, não o duvida Jesus,
pois o peixe nunca deixa de vir quando o chamar,
e esta circunstância, por um processo dedutivo
inevitável de que aqui não julgamos necessário
fazer a demonstração e apresentar a seqüência,
188
acabou por levá-lo, com o tempo, a perguntar-se
se não haveria acaso outros poderes que o Senhor
estivesse disposto a ceder-lhe, não por delegação
ou outorga, claro está, apenas emprestados, e com
a condição de fazer deles bom uso, o que, como
temos visto, Jesus estava em condições de garantir,
haja vista o trabalho a que meteu ombros, sem
mais que a intuição a ajudá-lo.
A maneira de saber
era fácil, tão fácil como dizer ai, bastava fazer
a experiência, se ela resultasse, era porque Deus
estava a favor, se não resultasse, Deus manifestava
que estava contra. Simplesmente, havia uma questão
prévia a resolver, e essa questão era a escolha.
Não sendo possível consultar diretamente o Senhor,
Jesus teria de arriscar, seleccionar entre os
poderes possíveis o que parecesse oferecer menos
resistência e que não desse demasiado nas vistas,
porém não tão discreto que passasse despercebido
a quem dele viesse a beneficiar e ao mundo,
com o que padeceria a glória do Senhor, que em
tudo deve prevalecer. (ESJC, 2000, p. 333-334)
A passagem acima espelha a visão que se constrói sobre a personagem
Jesus. Ele já sabia que seu destino seria a morte escolhida pelo
Pai, reconhecia-se impotente frente a esse fato.
Não encontrava auxílio
ou apoio Nele. Assim, resolve agir para sobreviver à tormenta da adversidade.
E experimenta simplesmente. Segundo o narrador, o milagre da
multiplicação dos peixes é fruto de uma tentativa e não de uma certeza.
E Jesus assume uma atitude humana: frente à adversidade, arrisca-se.
O narrador destaca, com alguma ironia, que havia ‘uma questão
prévia a resolver, e essa questão era a escolha’. Significativa passagem
essa que retira de Deus o poder de decidir sobre o destino de outrem e
traz para o protagonista a decisão sobre sua própria vida.
Por meio de
suas escolhas, a personagem passa a experimentar os acontecimentos
do mundo e não se priva de distinguir-se do Pai. Enfrenta a aventura
desconhecida rumo à morte sem abster-se de viver o que lhe é de direito:
também não quer passar despercebido. A transgressão reside no
ponto de vista da história, mas também na dessacralização da linguagem
utilizada para contar o que já está registrado no texto bíblico.
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5. Itinerâncias do Nada
Segundo Edgar, Morin, em seu livro Terra-Pátria, a consciência
da morte nos leva a uma condenação prévia, a um eterno estado de
finitude, a “viver entre nada e nada, o nada de antes, o nada de depois,
cercados de nada durante”.
E continua representando o ato de viver
como “itinerância”, um caminhar que se inicia no nascimento e pressupõe
a morte. Embora pareça um caminho desalentador, o autor oferece
uma saída:
Estamos na aventura desconhecida. A insatisfação
que faz recomeçar a itinerância jamais poderia ser
saciada por esta. Devemos assumir a incerteza e a
inquietude, devemos assumir o dasein, o fato de
estar aí sem saber por quê.
Cada vez mais haverá
fontes de angústia e cada vez mais haverá necessidade
de participação, de fervor, de fraternidade,
os únicos que sabem, não aniquilar, mas rechaçar
a angústia. O amor é o antídoto, a réplica – não a
resposta – à angústia. É a experiência fundamentalmente
positiva do ser humano, em que a comunhão,
a exaltação de si, do outro, são levados ao
seu melhor, quando não se alteraram pela possessividade.
Será que não se poderia degelar a enorme
quantidade de amor petrificado em religiões
e abstrações, votá-lo não mais ao imortal, mas ao
mortal? (Morin, Kern, 2000, p. 178)
A proposta de Morin para a contemporaneidade parece condizer
com a apresentada no romance em questão. As duas apresentam uma
saída para a perdição em que se encontra a humanidade, ou seja, sugerem
a busca de um novo procedimento ético.
Observemos como a
proposta se configura no romance:
Jesus morre, morre, e já o vai deixando a vida,
quando de súbito o céu por cima da sua cabeça se
abre de par em par e Deus aparece, vestido como
estivera na barca, e a sua voz ressoa por toda a
terra, dizendo, Tu és o meu Filho muito amado,
em ti pus toda a minha complacência. Então Jesus
compreendeu que viera trazido ao engano como
se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora
traçada para morrer assim desde o princípio dos
princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de
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sangue e de sofrimento que do seu lado irá nascer
e alagar toda a terra, clamou para o céu aberto
onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque
ele não sabe o que fez.
Depois, foi morrendo no
meio de um sonho, estava em Nazaré e ouvia o
pai dizer-lhe, encolhendo os ombros e sorrindo
também, Nem eu posso fazer-lhe todas as perguntas,
nem tu podes dar-lhes todas as respostas.(...).
(ESJC, 2000, p.444)
O sentido expresso por Morin de existência – dasein – carrega
em si a expressão de Heidegger, o sentido de finitude inerente à experiência.
Saramago, ao iniciar sua obra com a descrição da cena da
crucificação, transforma em Literatura as idéias discutidas nos escritos
dos filósofos citados – e também de seus antecessores.
E, carregando
em si a natureza transgressora da arte, modifica o paradigma da tradição
religiosa, transferindo o caráter sagrado das decisões de Deus para
o agir humano.
Sabe-se inicialmente que a vida é finita e que o destino da personagem
Jesus é o conhecido, entretanto, há nela uma nova ética, pois
ele aceita sua condenação e, serenamente, passa a habitar a Terra como
quem passa por uma experiência. E o narrador sarapuiano usa a
linguagem literária para singularizá-la.
Nela, Jesus passa a viver o “habitar
poético” citado por Benedito Nunes: “a instauração poética pela
palavra regeria o construir, no sentido do trato da terra para erigir a
habitação humana”. (2007, p.151)
O novo ponto de vista sobre a história de Jesus, no ESJC, é revelado
pela linguagem e (não)ação da personagem, já que tudo é ficção
previamente revelada pelo narrador: “O que temos diante de nós é
papel e tinta, mais nada.”(ESJC, 2000, p. 13). Portanto, há dois vieses
sugeridos na construção de uma nova ética neste romance.
O primeiro
diz respeito à linguagem. A quebra da sintaxe, o uso de ironias e também
a presença do lirismo na narrativa sugerem uma possível saída
para a angústia vivida na contemporaneidade. A linguagem que aproxima
e não define sentidos, que relaciona e não generaliza, que sugere e
não fecha sentidos, poderia ocupar as fendas deixadas por aqueles que
denunciaram a finitude do ser.
O segundo refere-se ao agir da personagem. Ao aceitar os erros
de seu Pai, ao permitir que ele tomasse posse do poder desejado, ao
permitir que se concretizasse o plano divino, ele revela um procedimento
difícil de ser imaginado em meio à barbárie, entretanto possível.
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Ele O perdoa. E aponta para uma possível atitude de resistência frente
a nossa perdição. O perdão.
Assim, pode haver um caminho para a construção de uma ética
na contemporaneidade. Um agir que não depende de ação, mas de
transformação interior, de consciência de si e das relações de si com o
mundo. Da compreensão do outro em si. A ética que resiste à barbárie,
pois faz do homem consciência de sua impermanência, de sua finitude
e de sua imperfeição.
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Referências
FRYE, Northorp. O código dos códigos. São Paulo: Boitempo Editoral,
2ª edição, 2006.
MORIN, Edgar. O método 6 – ÉTICA. Porto Alegre: Editora Sulina.
MORIN, Edgar, KERN, Anne Brigitte. Terra-Pátria. Porto Alegre: Editora
Sulina, 3ª edição, 2000.
NUNES, Benedito. Hermenêutica e Poesia. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2007.
SARAMAGO. José. O Evangelho Segundo Jesus Cristo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
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